As Primeiras Palavras

Não me recordo do momento exato em que balbuciei a primeira palavra ou qual foi. Mas não lembro de nada mesmo. Sou capaz de assistir uma mesma comédia e rir da mesma piada uma dezena de vezes. Porém, já me perguntei diversas vezes: Como foi falar pela primeira vez? O que me moveu a falar? E toda vez que me faço essas perguntas viajo a um passado imaginário e me vejo semiparalizado em meu corpo aprendiz tentando talvez pedir água ou comida, ou avisar que estava cagado. Fisiologismos. É. Falo porque preciso. Digo o que tenho necessidade. Todas as vezes que não falei, fiquei com fome, com sede ou sujo.

Fui crescendo e, depois de um tempo, fui assim, meio sem querer, ficando tímido. E comecei a desenvolver estratégias sofisticadas para dizer as coisas. Sem falar propriamente. Então comecei a desenhar. A vantagem do desenho é a possibilidade de comer e beber sem parar de falar. A desvantagem era que eu produzia mais cocô. Penso agora que, no fundo, eu era extrovertido, pois não parava de falar através dos desenhos. Nesse ponto, além de obviamente exercitar a visão, a minha audição começou a ficar mais aguçada porque eu desejava saber se os outros estavam entendendo o que eu dizia através dos traços. Que os outros verbalizassem. E era comum ouvir as pessoas comentarem: “Nossa! Como ele é inteligente! Tão concentrado. Tão observador”. E minhas observações fizeram concluir que eu não estava sendo suficientemente claro. Minha imitação de mundo numa folha em branco não passava nem perto de fazer as pessoas entenderem meus apelos de menino. Percebi que, de certa forma, as pessoas também estavam cagando.

E, de repente, a densa e vertiginosa adolescência chegou. Me deixou desesperado de tanta dúvida. E todos se voltaram para mim. Pareciam apreensivos. Elogiavam: “Nossa! Como ele é inteligente! Tão concentrado. Tão observador”. “Nossa! Como ele é inteligente! Tão concentrado. Tão observador”. E eu me perguntava: “Por que ninguém me entende?” “Por que ninguém me entende?” E eu descobri que quem não estava entendendo nada era eu. E aí, meio sem querer, comecei a tocar violão com a desculpa de que a aula era para ajudar a matar o tempo enquanto levava a minha irmã para dançar balé na academia de música e dança. Mas algo aconteceu. Pois experimentei uma sensação única. Até aquele momento, a maior onda de descoberta que meu corpo sentia. Foi amor ao primeiro acorde. Paixão. Minhas células afirmaram: “Isso o faz poderoso”.


A música organizava os sentidos. Evidentemente, segui no curso. À medida que o meu repertório ia expandindo, a música e seus compositores iam me indicando, também, o caminho da poesia. A palavra escrita enfim começava a ter realmente significado. Era uma nova forma de desenhar meus sentimentos. As palavras não serviam mais somente para fazer o dever de casa. Elas eram minhas amigas. Foi quando algo espetacular aconteceu. As pessoas não me elogiavam mais. Caladas, me escutavam.

Então se deu uma avalanche de descobertas. No mesmo ano descobri que minha mãe também tinha sentimentos. Ela começou a escrever poesias para que eu musicasse. Aliás, minha primeira composição é uma parceria com a minha mãe. Meu pai e minha irmã do meio revelaram seus sentimentos e me fizeram parceiros em seus versos. A música e agora a poesia me mostraram que tinha mais gente ilhada. Me fizeram descobrir que eu não era tão inteligente, nem tão concentrado ou observador. Me mostraram que a palavra ainda revelaria mais significados.


¬ lpz.

[foto: 'Banho de Tanque', de Francisco Pozino. Eu e minha mãe, Francisca, em 1972.]

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