Fragmentos do Ivaí

"No carro. O Vale do Ivaí é belíssimo. Um fusca verde na estrada em meio à plantação. Campos verdes, vida organizada, frio de lascar. Estradas bem pavimentadas."

Talvez resida em nós mesmos o receio de trazer à tona a criança que também somos. Nos humanizarmos. Nos permitir simplesmente brincar. Porque se não for imbuído do espírito da brincadeira, o brinquedo de roda é mera sincronização de comandos. Pois o jogo da roda leva a refletir sobre o meu papel em relação aos outros. Me dá a opção de conhecer alguém. Me liga ao coletivo. Nos faz agir coletivamente. O próprio brinquedo demonstra que é necessário um plano. Para superarmos os desafios propostos pelo jogo. Será preciso a dose certa de coragem para nos colocar em ação.

"Quando a caminho das cidades, o sol vai ficando pra trás.Esses caminhões que atravancam o meu caminho, eles passarão, e eu? Passarinho?"

Na roda e dentro dela materializamos a dinâmica entre coletivo e indivíduo. Nosso corpo entra em cena. Deixa pousar sobre ele os arquétipos que compõem o repertório humano. E faz do corpo um lugar seguro para ensaiar os sentimentos. Experimentar sensações. Um lugar onde eu seja reconhecido e entenda que sou apenas parte do contexto humano.

"Ford 53 vermelho."

Sabedoria local.
Senhora, merendeira, Ariranha do Ivaí: “A gente não sabe o que vai precisar.”

"Grandes silos."

Mas como acordar o mistério adormecido dos brinquedos de roda? Evocar a cultura ancestral da formação em roda?

[lpz, durante a Oficina 'Tangolomango - Brinquedo de Roda', no Paraná, em 2010.]


As Primeiras Ruas

Gosto muito de profetizar. Profetizo sobre futebol, economia, política... arte..! Isso deve ser mania de quem era adiantado na escola. O sujeito acaba achando que sabe tudo com um ano de antecedência.

Garanto que profetizo de maneira inteiramente racional; é o gosto puro e simples de projetar a cadeia de acontecimentos futuros a partir do contexto atual. Tem gente que ganha dinheiro com isso. Eu não. Sou um amador.

Por isso adoro a rua. Lá posso encontrar elementos para as minhas fantasias sobre um mundo possível. E usar a rua como espelho também tem raiz na minha infância. Eu tinha 7 anos quando comecei a ir e voltar da escola sozinho. Era uma caminhada de cerca de 20 minutos. No primeiro dia parei na portaria do prédio e me senti em frente ao mar. Um moleque e várias ruas! De um bairro para o outro! E sem mapas! Assim, fui!

As ruas por onde eu passava eram cheias de casas pequenas, casas amplas, botecos, rádios sintonizados, famílias jogando conversa fora na calçada, a favela vigilante e algum trânsito traiçoeiro.

Mas o subúrbio do Rio tinha e tem muito mais. No subúrbio fui ao cinema, ao teatro, à escola e aprendi música. Tanto estímulo, e sempre com um ano de antecedência, fez surgirem as minhas habilidades e teorias proféticas ficcionais. É uma ótima opção para conversa entre amigos.
¬ lpz

Generalizações II

"Esse Brasil é um país absurdo, surrealista tu dizes, mas isso não diz tudo, não explica nada, o Brasil não tem lógica, nunca se pode ter certeza. Quando se pensa ter entendido logo nos damos conta de que cometemos erro, de que o certo é diferente, um disparate."

[Jean Paul Sartre à Jorge Amado]

Generalizações I

"Os danos que podem resultar de um sistema nacional de ensino estão em primeiro lugar, no fato de que todos os estabelecimentos públicos trazem em si a idéia de permanência... Mesmo que tenham sido extremamente úteis à época de sua criação, é inevitável que se tornem cada vez mais desnecessários com o decorrer do tempo."

[Mark Philp, em 'Political and Philosophical Writings of William Godwin']

Amor Sem Proporções

Amo.
É. Simplesmente "Amo".
Não "Amo demais", nem "Amo pra caramba".
Plenamente "Amo".
O verbo "Amar" não tem proporções.
¬ lpz

As Primeiras Palavras

Não me recordo do momento exato em que balbuciei a primeira palavra ou qual foi. Mas não lembro de nada mesmo. Sou capaz de assistir uma mesma comédia e rir da mesma piada uma dezena de vezes. Porém, já me perguntei diversas vezes: Como foi falar pela primeira vez? O que me moveu a falar? E toda vez que me faço essas perguntas viajo a um passado imaginário e me vejo semiparalizado em meu corpo aprendiz tentando talvez pedir água ou comida, ou avisar que estava cagado. Fisiologismos. É. Falo porque preciso. Digo o que tenho necessidade. Todas as vezes que não falei, fiquei com fome, com sede ou sujo.

Fui crescendo e, depois de um tempo, fui assim, meio sem querer, ficando tímido. E comecei a desenvolver estratégias sofisticadas para dizer as coisas. Sem falar propriamente. Então comecei a desenhar. A vantagem do desenho é a possibilidade de comer e beber sem parar de falar. A desvantagem era que eu produzia mais cocô. Penso agora que, no fundo, eu era extrovertido, pois não parava de falar através dos desenhos. Nesse ponto, além de obviamente exercitar a visão, a minha audição começou a ficar mais aguçada porque eu desejava saber se os outros estavam entendendo o que eu dizia através dos traços. Que os outros verbalizassem. E era comum ouvir as pessoas comentarem: “Nossa! Como ele é inteligente! Tão concentrado. Tão observador”. E minhas observações fizeram concluir que eu não estava sendo suficientemente claro. Minha imitação de mundo numa folha em branco não passava nem perto de fazer as pessoas entenderem meus apelos de menino. Percebi que, de certa forma, as pessoas também estavam cagando.

E, de repente, a densa e vertiginosa adolescência chegou. Me deixou desesperado de tanta dúvida. E todos se voltaram para mim. Pareciam apreensivos. Elogiavam: “Nossa! Como ele é inteligente! Tão concentrado. Tão observador”. “Nossa! Como ele é inteligente! Tão concentrado. Tão observador”. E eu me perguntava: “Por que ninguém me entende?” “Por que ninguém me entende?” E eu descobri que quem não estava entendendo nada era eu. E aí, meio sem querer, comecei a tocar violão com a desculpa de que a aula era para ajudar a matar o tempo enquanto levava a minha irmã para dançar balé na academia de música e dança. Mas algo aconteceu. Pois experimentei uma sensação única. Até aquele momento, a maior onda de descoberta que meu corpo sentia. Foi amor ao primeiro acorde. Paixão. Minhas células afirmaram: “Isso o faz poderoso”.


A música organizava os sentidos. Evidentemente, segui no curso. À medida que o meu repertório ia expandindo, a música e seus compositores iam me indicando, também, o caminho da poesia. A palavra escrita enfim começava a ter realmente significado. Era uma nova forma de desenhar meus sentimentos. As palavras não serviam mais somente para fazer o dever de casa. Elas eram minhas amigas. Foi quando algo espetacular aconteceu. As pessoas não me elogiavam mais. Caladas, me escutavam.

Então se deu uma avalanche de descobertas. No mesmo ano descobri que minha mãe também tinha sentimentos. Ela começou a escrever poesias para que eu musicasse. Aliás, minha primeira composição é uma parceria com a minha mãe. Meu pai e minha irmã do meio revelaram seus sentimentos e me fizeram parceiros em seus versos. A música e agora a poesia me mostraram que tinha mais gente ilhada. Me fizeram descobrir que eu não era tão inteligente, nem tão concentrado ou observador. Me mostraram que a palavra ainda revelaria mais significados.


¬ lpz.

[foto: 'Banho de Tanque', de Francisco Pozino. Eu e minha mãe, Francisca, em 1972.]

Descaradamente



Descaradamente
Diz, cara! Da mente!.. Descarada mente...
Descara da mente.

Vídeo-poema: Luciano Pozino

Σοφία - Amor por Sofia "1"

"O menor número possível de pessoas entre os espíritos produtivos e os espíritos receptivos e famintos. Porque os intermediários falseiam, quase involuntariamente, o alimento que intermediam: assim, eles querem para valorização pela sua intermediação muito para si, o que também torna subtraído o espírito original produtivo: principalmente interesse, admiração, tempo, dinheiro e outros. - Assim: a gente vê sempre o professor como um mal necessário, tal como o comerciante: como um mal que deve tornar-se o menor possível!... tão pouco a gente vê certamente o motivo principal das necessidades espirituais na sobre-abundância dos professores, por esta causa se aprende tão pouco e tão mal."

NIETZSCHE - O Andarilho e sua Sombra - pg. 282